sábado, 29 de novembro de 2008

A moura Cassima

Era o governador do castelo de Loulé um homem dotado do dom da magia. Depois dos duros combates feridos em frente do castelo, reconheceu que a vila seria brevemente invadida pelos soldados de D. Paio. Na penúltima noite, quando todos descansavam, abriu uma das portas do castelo, e sem que o pressentissem, saiu acompanhado de suas filhas e encaminhou-se em direcção de uma fonte, a nascente da vila, aberta junto de um viçoso canavial.
Alguns cristãos, moradores em um aduar próximo, conheceram o governador e suas filhas; presenciaram então o governador aproximar-se da fonte e entoar umas preces tristes e monótonas, um pouco abafadas pelos soluços das três filhas. A música do canto era pausada, piedosa e de uma doçura angelical. Em seguida afastou-se ele da fonte, sozinho, com a cabeça inclinada sobre o peito, extremamente comovido. Na noite seguinte desamparou o castelo, acompanhado de toda a sua gente, e foram todos embarcar em Quarteira para Tânger, na doce esperança de que voltariam brevemente, acompanhados de grandes forças armadas, a retomar o castelo e a vila.
Em certo dia chegaram a Tânger alguns cristãos, cativos dos mouros, e entre estes um carpinteiro de Loulé. Vendidos em praça pública, foi o louletano adjudicado ao governador. Ao primeiro relancear de olhos conheceu o artista o velho governador; fingiu porém não o conhecer. Em certo dia aproximou-se o governador do carpinteiro e pediu-lhe notícias de Loulé.
– Quando dali saí, falava-se muito do encantamento das filhas do governador do castelo, respondeu o carpinteiro.
– Estás resolvido a prestar-me um grande serviço?
– O meu amo e senhor manda e eu obedeço.
– Preciso que vás ao Algarve desencantar minhas filhas.
– Por terra não sei o caminho, por mar nunca aprendi a guiar uma almadia.
– Acompanha-me ao meu quarto.
O carpinteiro acompanhou o amo, e viu no quarto sobre um par de alforges, e no meio do quarto um alguidar cheio de água.
O governador fechou por dentro a porta, olhou fixamente o artista, e disse-lhe:
– Antes de tudo quero que jures pelo teu Nazareno cumprir à risca tudo que te ordenar.
– Juro –respondeu o carpinteiro resolutamente.
Então governador tirou de uma caixa três pães e disse:
– Em cada um destes pães está escrito o nome de cada uma das minhas filhas. Na véspera de S. João, à meia-noite, abeira-te da fonte onde estão encantadas, lança-lhe dentro um destes pães e dize: Zara; depois este e dize: Lídia; e o terceiro: Cassima. Ditas estas palavras retira-te para tua casa.
– Daqui ao Algarve deve ser muito longe.
– Vês aquele alguidar cheio de água?
– Vejo.
– Coloca-te daquele lado do alguidar e dá um salto para trás. Se o saltares de um pulo, encontrar-te-ás imediatamente às portas da tua vila; se o não saltares cairás afogado no mar.
– Estou pronto.
– Andarei pelo ar muito tempo? – perguntou o carpinteiro.
– Em breve o saberás.
O artista aproximou-se mais do alguidar e segurou com energia os alforges e os pães.
– Salta! –ordenou o governador numa voz cava e acentuada.
O carpinteiro deu um salto e desapareceu.
E entretanto o carpinteiro atravessava como uma águia os ares e saltava os mares, chegando às portas da vila, ao romper da manhã.
Sentou-se a tomar fôlego, esperando que fossem abertas as portas.
Rompeu o sol no horizonte! Como é belo o nascer do sol na nossa província!
Encaminhou-se para uma casa e bateu à porta. Apareceu-lhe a mulher e ambos se abraçaram.
O carpinteiro, porém, depois de abraçar a mulher e beijar os filhos, subiu ao sótão e foi guardar os três pães dentro de uma arca usada, onde estavam as velhas alfaias, que de nada serviam.
Nas tardes dos domingos e dias santificados, saía o carpinteiro da vila em passeio à fonte e ali se conservava, horas inteiras, com os olhos fixos na água da fonte, esperando, a cada momento, ver lá no fundo alguma das mouras encantadas. Quando começava a escurecer, voltava para casa, e ia observar os três pães escondidos na arca.
Tantas vezes abriu a arca que a esposa, na ausência do marido, foi ver o que a arca continha. Viu os três pães e ficou surpreendida. Conteriam os pães algum dinheiro? Ou algum segredo do esposo apaixonado? Resolveu pedir informações ao marido.
– Não lhes toques –respondeu o marido visivelmente incomodado, quando a mulher o interrogou.
Esta resposta simples despertou a desconfiança na mulher. Em uma tarde de domingo, na ocasião em que o marido, debruçado na fonte, espreitava as mouras, subiu a mulher ao sótão, abriu a arca e deu, com uma faca, um grande golpe em um dos pães. Imediatamente começou a sair sangue pela cutilada. Amedrontada, a mulher curiosa escondeu o pão entre os outros e fechou a arca à pressa.
Nesse mesmo momento o marido, debruçado na fonte, ouviu distintamente um enorme grito saído do interior e da parte mais funda das águas. Sentiu arrepiarem-se-lhe os cabelos e não soube explicar aquele fenómeno. A mulher nada contou ao marido.
Chegou a noite da véspera de S. João (noite igualmente festejada por mouros e cristãos). O carpinteiro sentou-se ao lado da fonte e esperou que desse a meia-noite. Logo que deu a hora marcada, tirou dos alforges um pão, lançou-o dentro da fonte, e disse em voz alta:
– Zara!
E apareceu um relâmpago.
– Lídia! –exclamou o carpinteiro, no mesmo tom de voz, lançando o pão à fonte.
Repetiu-se o mesmo fenómeno.
– Cassima! –disse no mesmo tom.
Soou um grito, repassado de dor, e as águas permaneceram quietas.
– Cassima! –repetiu o artista, num tom de voz forte e enérgico.
Então o carpinteiro viu uma formosíssima mulher.
– O que significa isto? –perguntou o carpinteiro.
– Significa que estou condenada a passar séculos e séculos nesta fonte –respondeu a moura, soluçando.
– E de quem é a culpa?
– De tua mulher, que me cortou de um golpe a perna direita.
– Minha mulher... Naturalmente não teve a consciência do mal que fez.
– Nem a culpo.
Esperou o carpinteiro durante muitas semanas a retribuição que lhe fora prometida pelo pai das mouras.Um dia, na praça sentiu-se arremessado ao ar, como se fora arrastado num tufão, e foi cair, sem perigo, na praça de Tânger. Julgou-se perdido quando se viu agarrado por diversos mouros, que o conheciam e o levaram à presença do velho governador.
O velho governador, logo que viu o carpinteiro, empalideceu horrorosamente! Despediu os mouros e ficou só com o artista.
– O que fizeste da minha querida Cassima, infeliz?
– Não fui culpado, senhor! –respondeu o carpinteiro.– Bem sei, bem sei! Os fados foram-lhe contrários. Tinha de ser, tudo estava escrito.
O governador entrou como em êxtase e disse profeticamente:
– Enquanto Al-Faghar existir, nele palpitará um mundo de corações sarracenos.
Disse estas palavras, e exclamou:
– Sai da minha presença!
– Para onde ir, senhor?
– Tens razão. Tenho contigo um compromisso, e não será um velho crente que faltará a sua promessa.
Nessa noite, por ordem do governador, embarcou o nosso carpinteiro em um barco veneziano, que o levou directamente a Faro. Conta-se que foram tão importantes as riquezas que o pai das mouras lhe oferecera que ele chegara a comprar todo aquele terreno ocupado pela fonte e hortas circunvizinhas.
Seja o que for, o que é certo e se acha confirmado pela tradição constante de centenares de anos, é que a moura Cassima ainda hoje, nas noites de Inverno, ou nas amenas de Verão, pranteia tristemente o seu encantamento; e diz-se também que são muitas as encantadas por aqueles arredores.

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