domingo, 14 de dezembro de 2008

Lenda de Marim

A Quinta de Marim era regada por abundante veio de água que a fertilizava em toda a sua extensão. Em tempos remotos os terrenos desta quinta eram de uma esterilidade pasmosa pois que ali se não encontrava a mais pequena fonte.

Em tempo dos árabes nesta província, era dono daquela propriedade um rico mouro, que morava em um prédio acastelado quase no centro. Tinha ele uma filha formosíssima, o encanto do pai, e o enlevo dos jovens ricos de toda a província.

Em muitas ocasiões tentaram os mancebos mais ricos e poderosos conseguir do velho mouro a mão da filha, mas ele, teimoso e cioso, inventava todos os pretextos para se negar a quaisquer propostas desta natureza. Entre outros havia um mouro, jovem e rico de prendas, que não desistia do seu intento. Alem de ser bastante rico, era dotado de excelentes qualidades morais e artísticas: professava em extremo a poesia e era músico habilíssimo. É sabido que nesse tempo Silves era uma das mais importantes sedes, onde se distinguiam nas suas escolas os primeiros poetas sarracenos. Condé, na sua História, menciona muitos poetas e músicos que floresceram, naqueles tempos, entre os mouros. Não era raro ouvir-se, nas belas noites da primavera, defronte das ventanas dos palácios acastelados, onde palpitavam corações femininos, os sons maviosos do alaúde ou da tiorba, acompanhados os belos versos dos mais ricos namorados.

Não via o velho pai da gentil moura com bons olhos os excessos do pretendente à mão de sua filha, e quando à noite ouvia os cantares do mancebo em frente da ventana do quarto da filha, arrepelava-se e enchia-se de desespero. O mesmo não sucedia à moura gentil, que, não duvidava erguer-se da cama, a desoras, abrir mansamente a janela do seu quarto, e colocar-se ali horas esquecidas enquanto seu amado ali permanecia.

Muitas vezes o velho mouro tentou arrancar do coração da filha o amor que ali imperava, mas debalde: a jovem limitava-se a chorar, quando mais furibundas eram as repreensões paternas.

Vendo ele que por força nada conseguia, encetou outro caminho, fingindo-se condoído. Ordenou que o mancebo fosse chamado à sua presença.

— O que me queres? Perguntou o mancebo em presença do velho.

— Sei que amas minha filha...

— Por ela dou a minha vida...

— Livre-me Alá de contrariar as inclinações de duas almas. Mas eu fiz um voto.

— Que voto?...

— Os meus campos são faltados de água... só concederei a mão de minha filha a quem, em uma só noite, transportar para junto do meu castelo a famosa nascente da Fonte do Canal, a levante...

— Fica muito longe?

— A treze léguas.

O mancebo curvou-se em frente do velho e saiu da sua presença sem dar resposta.

O velho raposo, logo que o mancebo saiu da sua presença, esfregou as mãos e disse consigo:

— Deste estou eu livre.

E na noite desse dia deitou-se descansado na certeza de que não seria despertado do seu sono.

Seria meia-noite, acordou o velho a um movimento brusco e repentino do seu castelo. Sentou-se na cama e pôs-se a escutar. Momentos depois chegaram aos seus ouvidos as notas diferidas nas cordas de um alaúde e logo os seguintes versos:

Viva Alá; foi meu padre um bom mouro
Moura madre me deu de mamar
Moura fada fadou-me um tesouro
Moura virgem me tem de o entregar,


Quando o velho ouviu estes versos e conheceu pelo timbre da voz que o impertinente mancebo não desistia de fazer versos a sua filha, ergueu-se da cama num salto e correu à janela do seu quarto. Em frente da janela do quarto de sua filha presenciou um verdadeiro abismo, de onde jorrava água numa imponente catadupa, bastante para regar toda a propriedade. Ao lado do abismo e na beira viu um mancebo com o alaúde. Era o namorado de sua filha com os olhos presos na janela do seu quarto.

Fulo de raiva, mas não ousando violar a palavra dada, correu ao quarto da filha, e dirigiu-se para a ventana, onde lá a encontrou. Então pegou nela em peso e atirou-a pela janela sobre o rapaz, que não podendo conservar o equilíbrio caiu com o precioso fardo no fundo do abismo.

Não morreram, afirma ainda hoje o povo em seus versos de uma famosa antiguidade, porque muitas pessoas os têm visto sair do abismo à meia-noite. Saem sempre com os braços mutuamente cruzados e passeiam pela Quinta, cantando ao som do seu instrumento favorito. Estão ali encantados não porque o velho mouro os encantasse, mas por especial ordem do próprio Alá, que não consentiu que duas almas repletas de amor desaparecessem da face da terra, onde o egoísmo criou um trono.

— E o velho mouro?

— Esse está também encantado, responde o povo, mas no próprio castelo. Só sai dali em noites de tormenta, cantando orgulhoso e soberbo:

Eu sou o rei D. Diniz
Serpa, Moura, Mervim fiz
Não fiz mais porque não quis.
Quem dinheiro tiver
Fará o que quiser.


E o povo continua a amar os dois namorados odiando de morte o temeroso velho.

Lenda dos Corvos de S. Vicente

Em tempos muito antigos, quando o rei Rodrigo perdeu a batalha de Guadalete e os Mouros ocuparam a Península Ibérica e ordenaram que todas as igrejas fossem convertidas em mesquitas muçulmanas, os cristãos de Valência, entre eles um deão (decano), quiseram pôr a salvo o corpo do mártir S. Vicente que estava guardado numa igreja. Com intenção de chegarem às Astúrias por barco, fizeram-se ao mar levando consigo o corpo do santo. Cruzaram o Mediterrâneo sem perigo, mas quando chegaram ao Atlântico o mar estava mais turbulento e foram forçados a aproximar-se da costa. Perguntaram então ao mestre da embarcação qual era aquela terra tão bela e aquele cabo que avistavam. O mestre respondeu-lhes que a terra se chamava Algarve e que o cabo se chamava promontório Sacro. Foi então que os cristãos de Valência consideraram a hipótese de desembarcar, construir um templo em memória de S. Vicente e dar o nome do santo ao cabo mais ocidental, junto ao promontório de Sagres. Mas enquanto estavam nestas considerações, o barco encalhou, o que os forçou a passar ali a noite. Na manhã seguinte, quando se preparavam para retomar viagem, avistaram um navio pirata. O mestre da embarcação propôs-lhes afastar-se com o navio para evitar a abordagem dos corsários, enquanto os cristãos se escondiam na praia com a sua relíquia. Depois viria buscá-los. Mas o barco nunca mais voltou e os cristãos ficaram naquele lugar, construíram o templo em memória de S. Vicente e formaram uma pequena aldeia à sua volta, isolados naquele lugar ermo. Entretanto D. Afonso Henriques entrou em guerra com os mouros do Algarve e estes vingaram-se dos cristãos de S. Vicente, arrasando-lhes a aldeia e levando-os cativos. Passados cinquenta anos um cavaleiro veio avisar D. Afonso Henriques que existiam cativos cristãos entre os prisioneiros feitos numa batalha contra os Mouros. Chamados à presença do rei, o deão, já muito velho, contou-lhe a sua história e confidenciou-lhe que tinham enterrado o corpo de S. Vicente num local secreto. Pedia ao rei que resgatasse o corpo do mártir para um local seguro. D. Afonso Henriques aproveitou um período de tréguas na sua luta contra os Mouros e zarpou num barco com o deão a caminho de S. Vicente. Mas o deão morreu durante a viagem e sem saber o local exacto onde estava enterrado o santo, D. Afonso Henriques aproximou-se do cabo e das ruínas do antigo templo. Foi então que avistou um bando de corvos que sobrevoavam um certo lugar onde os seus homens escavaram e encontraram o sepulcro de S. Vicente, escondido na rocha. Trouxeram o corpo de S. Vicente de barco para Lisboa e durante toda a viagem foram acompanhados por dois corvos, cuja imagem ainda hoje figura nas armas de Lisboa em testemunho desta história extraordinária.

Lenda das Três Gémeas

No tempo em que Silves pertencia aos Mouros, vinha o rei Mohamed a passear a cavalo quando encontrou um destacamento do seu exército que trazia reféns cristãos. Entre estes estava uma lindíssima jovem, sumptuosamente vestida, acompanhada da sua aia, filha de um nobre morto durante o saque ao seu castelo. Mohamed ordenou que a nobre dama fosse levada para o seu castelo, onde a rodeou de todas as atenções, e lhe pediu que abraçasse a fé de Maomé para se tornar sua mulher. A jovem chorou de desespero porque Mohamed não lhe era indiferente, mas a sua aia encontrou a solução: ambas renegariam a fé cristã apenas exteriormente para agradar ao rei mouro e possibilitar o casamento. Passado algum tempo, nasceram três gémeas a quem os astrólogos auspiciaram beleza, bondade e ternura, para além de inteligência, mas avisaram o rei que este deveria vigiá-las quando estas chegassem à idade de casar. O rei não as deveria confiar a ninguém. Passaram alguns anos e a sultana morreu, ficando a aia, que tinha tomado o nome árabe de Cadiga, a tomar conta das jovens. Quando estas eram adolescentes o rei levou-as para um castelo longe de tudo, onde havia apenas o mar por horizonte. As princesas tornaram-se mulheres, mas embora gémeas tinham personalidades muito diferentes. A mais velha era intrépida, curiosa, porte distinto e de olhar insinuante e profundo. A do meio era a mais bela, de uma singular beleza e apreciava tudo o que era belo, as jóias, as flores e os perfumes caros. A mais nova era a mais sensível. Tímida e doce, passava horas a olhar o mar sob o luar prateado ou o pôr-do-sol ardente.

Um dia, contra todas as indicações do rei aportou perto do castelo uma galera com reféns cristãos, entre os quais se salientavam três jovens belos, altivos e bem vestidos. Curiosas, as princesas perguntaram a Cadiga quem eram aqueles homens de aspecto tão diferente dos mouros. Cadiga respondeu-lhes que eram cristãos portugueses e contou às princesas tudo sobre o seu passado. Como as princesas começassem a ficar demasiado interessadas com os jovens cristãos, Cadiga pediu ao rei que levasse as filhas para junto de si, sem lhe explicar a razão. Cavalgavam as princesas com o rei e o seu séquito a caminho de Silves quando se cruzaram com os três cativos cristãos que não respeitaram a ordem de baixarem o olhar. As princesas quando os avistaram levantaram os véus e o rei, furioso, mandou castigar os cristãos insolentes. As princesas ficaram muito tristes mas conseguiram convencer Cadiga a arranjar maneira de se encontrarem com os jovens cristãos. A paixão violenta desencadeada por aquele encontro foi alegria de pouca dura. Os três cristãos foram resgatados pelo rei português e iriam embora em breve. As princesas dispuseram-se a segui-los e a converterem-se à fé cristã antes de casarem com os nobres cristãos. Cadiga rejubilava por conseguir resgatar para a fé que secretamente professava as filhas da sua ama. Foi então que a princesa mais nova se recusou a partir e a abandonar o pai. Ficou para trás e, conta a lenda, morreu de tristeza pouco tempo depois. A sua alma ainda hoje se lamenta e chora na torre do castelo nas noites sem luar.

Lenda de Dona Branca

Reinava em Silves o inteligente e corajoso rei mouro Ben-Afan que numa noite de tempestade, no intervalo das suas lutas contra os cristãos, teve um sonho extraordinário. Um sonho que começou por ser um pesadelo, com tempestades e vampiros, mas que se tornou numa visão de anjos, música e perfumes e terminou pelo rosto de uma mulher, divinamente bela, com uma cruz ao peito. No dia seguinte, Ben-Afan procurou a fada Alina, sua conselheira, que lhe revelou que tinha sido ela própria a enviar-lhe o sonho e que a sua vida iria mudar. Deu-lhe então dois ramos, um de flor de murta e outro de louro, significando respectivamente o amor e a glória. Consoante os ramos murchassem ou florissem assim o rei deveria seguir as respectivas indicações. Enviou-o ao Mosteiro de Lorvão e disse-lhe que lá o esperava aquela que o amor tinha escolhido para sua companheira: Branca, princesa de Portugal. Para entrar no mosteiro, Ben-Afan disfarçou-se de eremita e o primeiro olhar que trocou com a princesa uniu-os para sempre. O rei mouro voltou ao seu castelo e preparou os seus guerreiros para o rapto da princesa. Branca de Portugal e Ben-Afan viveram a sua paixão sem limites, esquecidos do mundo e do tempo. O ramo de murta mantinha-se viçoso, até que um dia D. Afonso III, pai de Branca, cercou a cidade de Silves e Ben-Afan morreu com glória na batalha que se seguiu. Nas suas mãos foram encontrados um ramo de murta murcho e um ramo de louro viçoso.

domingo, 30 de novembro de 2008

A lenda da Moura Floripes

No sítio do Moinho do Sobrado, havia antigamente uma casa, onde aparecia à janela, noite fora, uma formosa mulher vestida de branco.

O único que se atrevia a andar por aquelas bandas à noite era um sujeito de meia idade - o compadre Zé - que se embriagava e adormecia na rua, sem receio.

A mulher de branco aproximava-se do bêbado, fazia-lhe meiguices e até se sentava a seu lado.O compadre Zé contava a sua história sem convencer ninguém a deslocar-se ao local para a comprovar. No entanto, o compadre Zé tinha um amigo mais jovem que se iria casar brevemente. Aproveitando-se do evento, promete ao amigo oferecer-lhe um seu terreno como prenda de casamento, caso ele tivesse a coragem de o acompanhar a ver o fantasma.

Este, transido de medo, lá foi à aventura, atendendo ao grande jeito que lhe fazia a prenda.

Sentou-se numa pedra, junto ao Moinho do Sobrado, e esperou pelas doze badaladas. Nesse momento surge da porta do Moinho uma mulher vestida de branco até aos pés. O vestido terminava numa bainha esfarrapada, a cobrir-lhe os pés descalços. A mulher aproximou-se com a face envolta num véu e uma flor nos cabelos loiros.

Julião, assim se chamava o amigo do compadre Zé, pergunta-lhe quem era e donde vinha.

- Sou a desditosa Floripes - respondeu, numa expressão triste.

- O que faz por aqui?

- Sou uma moura encantada. Quando a minha raça foi expulsa da província, viu-se o meu pai obrigado a partir, sem poder prevenir-me. Eu tinha um namorado que também fugiu e aqui fiquei sozinha, à espera a cada momento que o meu pai me viesse buscar. Numa noite em que esperava, vi ao longe a luz de uma embarcação. A noite era de tormenta e o barco escangalhou-se de encontro aos rochedos. Não era o meu pai que ali vinha: era o meu namorado, que foi engolido pelas ondas. Soube o meu pai deste funesto acontecimento e vendo que não lhe era possível vir buscar-me, encantou-me de lá.

Julião, penalizado com a triste história, logo pensou em oferecer-se para salvar a moura e perguntou:

— Existe algum meio de a salvar?

— Há sim - respondeu a moura.

— Que meio?

— É necessário que um homem me dê um abraço, à beira de um rio, e me fira no braço contíguo ao coração. Logo que tal aconteça, irei de imediato para junto dos meus familiares. Mas existe uma dificuldade.

— Que dificuldade - perguntou Julião, quase resolvido a ser o seu libertador.

— O homem que me abraçar e me ferir terá de me acompanhar até África, atravessar o oceano com duas velas acesas e casar comigo à chegada..

— Isso é que eu não poderei fazer. Já tenho casamento marcado com a
minha Aninhas.

— Então continuarei novamente encantada – respondeu a moura soluçando – Até agora, ninguém se atreveu a tanto sacrifício!

A moura continuou o seu encantamento durante muito tempo ainda, sentada no cais com os pés na água, esperando o seu pai voltar de África. Era por vezes vista no cais, sempre de noite, a conversar com um menino de olhos grandes e com gorro encarnado. Seria o menino algum mouro que ali também ficou encantado? Ninguém sabe responder...

Alguns olhanenses mais antigos acreditavam tanto nesta lenda que diziam que a Floripes era vista também durante o dia a fazer compras em lojas, onde pagava com uma moeda de ouro e sempre desaparecia sem receber o troco. Ainda hoje, quando alguém por qualquer razão não recebe o troco, se diz "és como a Floripes, não queres a torna!".

A Floripes foi também a personificação do medo do transcendente. Quando se quer acautelar alguém, ainda se diz "vê lá se te aparece a Floripes!".

Tb existe esta história curiosa, ocorrida durante a Primeira Guerra Mundial: numa trincheira da Flandres defendida por soldados portugueses, numa noite invernosa, dois olhanenses que estavam de sentinela viram surgir da neve um vulto branco de mulher. O pavor de estarem a ver a Floripes paralisou-lhes por momentos a capacidade de premirem o gatilho! Foram os momentos necessários para compreenderem que o vulto também não seria um soldado inimigo. E foi assim que a Floripes salvou a vida a uma mulher belga que fugia do lado alemão!

Talvez que este salvamento tivesse desencantado finalmente a Floripes, pois que há muito tempo a moura deixou de aparecer. Terá regressado finalmente à sua terra?

Lenda do Almocreve de Estói

O almocreve José Coimbra, conhecido também por Ti Zé da Serra, percorria habitualmente, com o seu burrinho, os caminhos do Algarve. Um dia ao passar junto das ruínas de Milreu, perto de Estói, encontrou uma bela moura encantada vestida com um manto de princesa que lhe sorriu. Fascinado, seguiu a moura até que ela chegou a um sítio onde bateu com o pé no chão três vezes e um alçapão se abriu. Desceram ambos por uma escadaria de mármore até uma sala enorme revestida a ouro onde a moura o deixou só por um instante antes de surgir acompanhada por um leão e uma serpente, seus irmãos encantados. A bela moura prometeu-lhe o palácio e todo o seu ouro se ele quebrasse o encanto: teria que ser três vezes engolido e vomitado pelo leão e três vezes abraçado pela serpente. O corpo do almocreve ficaria em chaga e finalmente a moura o beijaria na fronte para lhe retirar os santos óleos do baptismo. O almocreve pediu-lhe para pensar e a moura deixou-o partir com duas barras de ouro. José Coimbra voltou para casa e tentou esquecer o episódio, mas passado pouco tempo começou a empobrecer, ficando na mais absoluta miséria. Decidiu então vender as duas barras de ouro que tinha escondido, mas quando as olhou logo ficou cego. Como última esperança, resolveu consultar um especialista de olhos em Faro. Ao passar por Estói, apareceu-lhe a moura que o acusou de ter faltado à promessa de lhe dar uma resposta. A moura só lhe tinha poupado a vida porque ele nunca tinha revelado o segredo daquele encontro. O almocreve chorou sinceras lágrimas de arrependimento, comovendo a moura que decidiu perdoar-lhe e devolver-lhe a visão. Conta-se que o almocreve nunca mais voltou a passar por Estói, onde ainda hoje uma moura e os seus irmãos esperam por quem os queira desencantar.

sábado, 29 de novembro de 2008

A moura Cassima

Era o governador do castelo de Loulé um homem dotado do dom da magia. Depois dos duros combates feridos em frente do castelo, reconheceu que a vila seria brevemente invadida pelos soldados de D. Paio. Na penúltima noite, quando todos descansavam, abriu uma das portas do castelo, e sem que o pressentissem, saiu acompanhado de suas filhas e encaminhou-se em direcção de uma fonte, a nascente da vila, aberta junto de um viçoso canavial.
Alguns cristãos, moradores em um aduar próximo, conheceram o governador e suas filhas; presenciaram então o governador aproximar-se da fonte e entoar umas preces tristes e monótonas, um pouco abafadas pelos soluços das três filhas. A música do canto era pausada, piedosa e de uma doçura angelical. Em seguida afastou-se ele da fonte, sozinho, com a cabeça inclinada sobre o peito, extremamente comovido. Na noite seguinte desamparou o castelo, acompanhado de toda a sua gente, e foram todos embarcar em Quarteira para Tânger, na doce esperança de que voltariam brevemente, acompanhados de grandes forças armadas, a retomar o castelo e a vila.
Em certo dia chegaram a Tânger alguns cristãos, cativos dos mouros, e entre estes um carpinteiro de Loulé. Vendidos em praça pública, foi o louletano adjudicado ao governador. Ao primeiro relancear de olhos conheceu o artista o velho governador; fingiu porém não o conhecer. Em certo dia aproximou-se o governador do carpinteiro e pediu-lhe notícias de Loulé.
– Quando dali saí, falava-se muito do encantamento das filhas do governador do castelo, respondeu o carpinteiro.
– Estás resolvido a prestar-me um grande serviço?
– O meu amo e senhor manda e eu obedeço.
– Preciso que vás ao Algarve desencantar minhas filhas.
– Por terra não sei o caminho, por mar nunca aprendi a guiar uma almadia.
– Acompanha-me ao meu quarto.
O carpinteiro acompanhou o amo, e viu no quarto sobre um par de alforges, e no meio do quarto um alguidar cheio de água.
O governador fechou por dentro a porta, olhou fixamente o artista, e disse-lhe:
– Antes de tudo quero que jures pelo teu Nazareno cumprir à risca tudo que te ordenar.
– Juro –respondeu o carpinteiro resolutamente.
Então governador tirou de uma caixa três pães e disse:
– Em cada um destes pães está escrito o nome de cada uma das minhas filhas. Na véspera de S. João, à meia-noite, abeira-te da fonte onde estão encantadas, lança-lhe dentro um destes pães e dize: Zara; depois este e dize: Lídia; e o terceiro: Cassima. Ditas estas palavras retira-te para tua casa.
– Daqui ao Algarve deve ser muito longe.
– Vês aquele alguidar cheio de água?
– Vejo.
– Coloca-te daquele lado do alguidar e dá um salto para trás. Se o saltares de um pulo, encontrar-te-ás imediatamente às portas da tua vila; se o não saltares cairás afogado no mar.
– Estou pronto.
– Andarei pelo ar muito tempo? – perguntou o carpinteiro.
– Em breve o saberás.
O artista aproximou-se mais do alguidar e segurou com energia os alforges e os pães.
– Salta! –ordenou o governador numa voz cava e acentuada.
O carpinteiro deu um salto e desapareceu.
E entretanto o carpinteiro atravessava como uma águia os ares e saltava os mares, chegando às portas da vila, ao romper da manhã.
Sentou-se a tomar fôlego, esperando que fossem abertas as portas.
Rompeu o sol no horizonte! Como é belo o nascer do sol na nossa província!
Encaminhou-se para uma casa e bateu à porta. Apareceu-lhe a mulher e ambos se abraçaram.
O carpinteiro, porém, depois de abraçar a mulher e beijar os filhos, subiu ao sótão e foi guardar os três pães dentro de uma arca usada, onde estavam as velhas alfaias, que de nada serviam.
Nas tardes dos domingos e dias santificados, saía o carpinteiro da vila em passeio à fonte e ali se conservava, horas inteiras, com os olhos fixos na água da fonte, esperando, a cada momento, ver lá no fundo alguma das mouras encantadas. Quando começava a escurecer, voltava para casa, e ia observar os três pães escondidos na arca.
Tantas vezes abriu a arca que a esposa, na ausência do marido, foi ver o que a arca continha. Viu os três pães e ficou surpreendida. Conteriam os pães algum dinheiro? Ou algum segredo do esposo apaixonado? Resolveu pedir informações ao marido.
– Não lhes toques –respondeu o marido visivelmente incomodado, quando a mulher o interrogou.
Esta resposta simples despertou a desconfiança na mulher. Em uma tarde de domingo, na ocasião em que o marido, debruçado na fonte, espreitava as mouras, subiu a mulher ao sótão, abriu a arca e deu, com uma faca, um grande golpe em um dos pães. Imediatamente começou a sair sangue pela cutilada. Amedrontada, a mulher curiosa escondeu o pão entre os outros e fechou a arca à pressa.
Nesse mesmo momento o marido, debruçado na fonte, ouviu distintamente um enorme grito saído do interior e da parte mais funda das águas. Sentiu arrepiarem-se-lhe os cabelos e não soube explicar aquele fenómeno. A mulher nada contou ao marido.
Chegou a noite da véspera de S. João (noite igualmente festejada por mouros e cristãos). O carpinteiro sentou-se ao lado da fonte e esperou que desse a meia-noite. Logo que deu a hora marcada, tirou dos alforges um pão, lançou-o dentro da fonte, e disse em voz alta:
– Zara!
E apareceu um relâmpago.
– Lídia! –exclamou o carpinteiro, no mesmo tom de voz, lançando o pão à fonte.
Repetiu-se o mesmo fenómeno.
– Cassima! –disse no mesmo tom.
Soou um grito, repassado de dor, e as águas permaneceram quietas.
– Cassima! –repetiu o artista, num tom de voz forte e enérgico.
Então o carpinteiro viu uma formosíssima mulher.
– O que significa isto? –perguntou o carpinteiro.
– Significa que estou condenada a passar séculos e séculos nesta fonte –respondeu a moura, soluçando.
– E de quem é a culpa?
– De tua mulher, que me cortou de um golpe a perna direita.
– Minha mulher... Naturalmente não teve a consciência do mal que fez.
– Nem a culpo.
Esperou o carpinteiro durante muitas semanas a retribuição que lhe fora prometida pelo pai das mouras.Um dia, na praça sentiu-se arremessado ao ar, como se fora arrastado num tufão, e foi cair, sem perigo, na praça de Tânger. Julgou-se perdido quando se viu agarrado por diversos mouros, que o conheciam e o levaram à presença do velho governador.
O velho governador, logo que viu o carpinteiro, empalideceu horrorosamente! Despediu os mouros e ficou só com o artista.
– O que fizeste da minha querida Cassima, infeliz?
– Não fui culpado, senhor! –respondeu o carpinteiro.– Bem sei, bem sei! Os fados foram-lhe contrários. Tinha de ser, tudo estava escrito.
O governador entrou como em êxtase e disse profeticamente:
– Enquanto Al-Faghar existir, nele palpitará um mundo de corações sarracenos.
Disse estas palavras, e exclamou:
– Sai da minha presença!
– Para onde ir, senhor?
– Tens razão. Tenho contigo um compromisso, e não será um velho crente que faltará a sua promessa.
Nessa noite, por ordem do governador, embarcou o nosso carpinteiro em um barco veneziano, que o levou directamente a Faro. Conta-se que foram tão importantes as riquezas que o pai das mouras lhe oferecera que ele chegara a comprar todo aquele terreno ocupado pela fonte e hortas circunvizinhas.
Seja o que for, o que é certo e se acha confirmado pela tradição constante de centenares de anos, é que a moura Cassima ainda hoje, nas noites de Inverno, ou nas amenas de Verão, pranteia tristemente o seu encantamento; e diz-se também que são muitas as encantadas por aqueles arredores.

A Moura Dinorah

Dinorah, filha de Agar, era uma das mais belas mouras de todo o Algarve muçulmano. Vivia num belíssimo palácio de mil colunas finas de mármore rosa e ventanas de filigrana de madeira, rodeada de coxins de seda coloridas e macias como o roçar de asas de pomba. Jardins de maravilha, onde bailavam exóticas danças flores de todo o mundo, haviam sido plantados para encantar os seus olhos negros. Riachos transparentes saltitavam de calhau em calhau num rumorejar de música constante.
E, contudo, Dinorah chorava. Era como se uma tristeza infinda, inexplicável, se tivesse instalado no seu coração. E Dinorah chorava por estar encerrada por detrás da filigrana das ventanas, por ter de sentir beleza no esquadriado dos seus lindíssimos jardins. Dinorah chorava afinal aquela sua solidão irremissível, chorava-se coração para amar sem ter a quem amar. Por isso os seus olhos negros, negros como um céu onde a lua nunca passeou o luar, eram tristes.
Numa tarde de Primavera, começavam as amendoeiras a florir, estava Dinorah no seu balcão, passeando os olhos tristes e negros pelo desabrochar da natureza, quando passou um trovador que ao ver tanta melancolia lhe perguntou cantando como a poderia alegrar. E Dinorah respondeu:
- Ah, trovador, trovador!...Se me pudesses ajudar, dá-me um véu para noivar…
Ouvindo estas palavras partiu o cavaleiro a galope, ficou Dinorah a chorar.
Mas mouro com cristão não deve falar e a Alá não agradou este breve instante. Por isso decidiu, logo ali, aqueles dois castigar.
Chegou a noite de mansinho e cobriu com o seu manto da cor dos olhos de Dinorah todas as coisas da terra. A essa mesma hora, uma voz dulcíssima, cheia de uma ternura nunca ouvida, soou ao som de um alaúde, cantando trovas velhinhas. E nessa noite Dinorah dormiu tranquila e em paz porque sabia já não estar só.
Ao acordar, pela manhã, os olhos negros da moura brilhavam finalmente como se nessa noite a lua tivesse, pela primeira vez, deixado o luar encantar a sua visão. E quando chegou à janela viu acenar-lhe o braço incansável do trovador da noite e tudo, tudo à volta deles eram pétalas brancas de noivar.
Estendeu, também ela, o braço para num aceno agradecer mas, neste gesto, viu-se transformar em fonte e o seu trovador mudar-se em lago. Desde então andam juntos a correr para o mar e todos os anos, pela Primavera, Alá manda-lhes as flores de amendoeira para que possam noivar.

A Moura de Tavira

Existe uma lenda que conta a história de uma grande paixão de um cavaleiro cristão, D. Ramiro, pela Moura Encantada. Foi precisamente numa noite de S. João que tudo aconteceu. Quando D. Ramiro avistou a Moura nas ameias do castelo, impressionou-o tanto a sua extrema beleza como a infelicidade da sua condição. Perdidamente enamorado, resolveu subir ao castelo para a desencantar. A subida através dos muros da fortaleza não se revelou tarefa fácil e demorou tanto a subir que, entretanto, amanheceu e assim passou a hora de se poder realizar o desencanto. Diz o povo que a Moura, mal rompeu a aurora, entrou em lágrimas para a nuvem que pairava por cima do castelo, enquanto D. Ramiro assistia sem nada poder fazer. A frustração do jovem cavaleiro foi tão grande que este se empenhou com grande fúria nas batalhas contra os Mouros. Conquistou, ao que dizem, um castelo, mas ficou sem Moura para amar...