A Quinta de Marim era regada por abundante veio de água que a fertilizava em toda a sua extensão. Em tempos remotos os terrenos desta quinta eram de uma esterilidade pasmosa pois que ali se não encontrava a mais pequena fonte.
Em tempo dos árabes nesta província, era dono daquela propriedade um rico mouro, que morava em um prédio acastelado quase no centro. Tinha ele uma filha formosíssima, o encanto do pai, e o enlevo dos jovens ricos de toda a província.
Em muitas ocasiões tentaram os mancebos mais ricos e poderosos conseguir do velho mouro a mão da filha, mas ele, teimoso e cioso, inventava todos os pretextos para se negar a quaisquer propostas desta natureza. Entre outros havia um mouro, jovem e rico de prendas, que não desistia do seu intento. Alem de ser bastante rico, era dotado de excelentes qualidades morais e artísticas: professava em extremo a poesia e era músico habilíssimo. É sabido que nesse tempo Silves era uma das mais importantes sedes, onde se distinguiam nas suas escolas os primeiros poetas sarracenos. Condé, na sua História, menciona muitos poetas e músicos que floresceram, naqueles tempos, entre os mouros. Não era raro ouvir-se, nas belas noites da primavera, defronte das ventanas dos palácios acastelados, onde palpitavam corações femininos, os sons maviosos do alaúde ou da tiorba, acompanhados os belos versos dos mais ricos namorados.
Não via o velho pai da gentil moura com bons olhos os excessos do pretendente à mão de sua filha, e quando à noite ouvia os cantares do mancebo em frente da ventana do quarto da filha, arrepelava-se e enchia-se de desespero. O mesmo não sucedia à moura gentil, que, não duvidava erguer-se da cama, a desoras, abrir mansamente a janela do seu quarto, e colocar-se ali horas esquecidas enquanto seu amado ali permanecia.
Muitas vezes o velho mouro tentou arrancar do coração da filha o amor que ali imperava, mas debalde: a jovem limitava-se a chorar, quando mais furibundas eram as repreensões paternas.
Vendo ele que por força nada conseguia, encetou outro caminho, fingindo-se condoído. Ordenou que o mancebo fosse chamado à sua presença.
— O que me queres? Perguntou o mancebo em presença do velho.
— Sei que amas minha filha...
— Por ela dou a minha vida...
— Livre-me Alá de contrariar as inclinações de duas almas. Mas eu fiz um voto.
— Que voto?...
— Os meus campos são faltados de água... só concederei a mão de minha filha a quem, em uma só noite, transportar para junto do meu castelo a famosa nascente da Fonte do Canal, a levante...
— Fica muito longe?
— A treze léguas.
O mancebo curvou-se em frente do velho e saiu da sua presença sem dar resposta.
O velho raposo, logo que o mancebo saiu da sua presença, esfregou as mãos e disse consigo:
— Deste estou eu livre.
E na noite desse dia deitou-se descansado na certeza de que não seria despertado do seu sono.
Seria meia-noite, acordou o velho a um movimento brusco e repentino do seu castelo. Sentou-se na cama e pôs-se a escutar. Momentos depois chegaram aos seus ouvidos as notas diferidas nas cordas de um alaúde e logo os seguintes versos:
Viva Alá; foi meu padre um bom mouro
Moura madre me deu de mamar
Moura fada fadou-me um tesouro
Moura virgem me tem de o entregar,
Quando o velho ouviu estes versos e conheceu pelo timbre da voz que o impertinente mancebo não desistia de fazer versos a sua filha, ergueu-se da cama num salto e correu à janela do seu quarto. Em frente da janela do quarto de sua filha presenciou um verdadeiro abismo, de onde jorrava água numa imponente catadupa, bastante para regar toda a propriedade. Ao lado do abismo e na beira viu um mancebo com o alaúde. Era o namorado de sua filha com os olhos presos na janela do seu quarto.
Fulo de raiva, mas não ousando violar a palavra dada, correu ao quarto da filha, e dirigiu-se para a ventana, onde lá a encontrou. Então pegou nela em peso e atirou-a pela janela sobre o rapaz, que não podendo conservar o equilíbrio caiu com o precioso fardo no fundo do abismo.
Não morreram, afirma ainda hoje o povo em seus versos de uma famosa antiguidade, porque muitas pessoas os têm visto sair do abismo à meia-noite. Saem sempre com os braços mutuamente cruzados e passeiam pela Quinta, cantando ao som do seu instrumento favorito. Estão ali encantados não porque o velho mouro os encantasse, mas por especial ordem do próprio Alá, que não consentiu que duas almas repletas de amor desaparecessem da face da terra, onde o egoísmo criou um trono.
— E o velho mouro?
— Esse está também encantado, responde o povo, mas no próprio castelo. Só sai dali em noites de tormenta, cantando orgulhoso e soberbo:
Eu sou o rei D. Diniz
Serpa, Moura, Mervim fiz
Não fiz mais porque não quis.
Quem dinheiro tiver
Fará o que quiser.
E o povo continua a amar os dois namorados odiando de morte o temeroso velho.
domingo, 14 de dezembro de 2008
Lenda dos Corvos de S. Vicente
Em tempos muito antigos, quando o rei Rodrigo perdeu a batalha de Guadalete e os Mouros ocuparam a Península Ibérica e ordenaram que todas as igrejas fossem convertidas em mesquitas muçulmanas, os cristãos de Valência, entre eles um deão (decano), quiseram pôr a salvo o corpo do mártir S. Vicente que estava guardado numa igreja. Com intenção de chegarem às Astúrias por barco, fizeram-se ao mar levando consigo o corpo do santo. Cruzaram o Mediterrâneo sem perigo, mas quando chegaram ao Atlântico o mar estava mais turbulento e foram forçados a aproximar-se da costa. Perguntaram então ao mestre da embarcação qual era aquela terra tão bela e aquele cabo que avistavam. O mestre respondeu-lhes que a terra se chamava Algarve e que o cabo se chamava promontório Sacro. Foi então que os cristãos de Valência consideraram a hipótese de desembarcar, construir um templo em memória de S. Vicente e dar o nome do santo ao cabo mais ocidental, junto ao promontório de Sagres. Mas enquanto estavam nestas considerações, o barco encalhou, o que os forçou a passar ali a noite. Na manhã seguinte, quando se preparavam para retomar viagem, avistaram um navio pirata. O mestre da embarcação propôs-lhes afastar-se com o navio para evitar a abordagem dos corsários, enquanto os cristãos se escondiam na praia com a sua relíquia. Depois viria buscá-los. Mas o barco nunca mais voltou e os cristãos ficaram naquele lugar, construíram o templo em memória de S. Vicente e formaram uma pequena aldeia à sua volta, isolados naquele lugar ermo. Entretanto D. Afonso Henriques entrou em guerra com os mouros do Algarve e estes vingaram-se dos cristãos de S. Vicente, arrasando-lhes a aldeia e levando-os cativos. Passados cinquenta anos um cavaleiro veio avisar D. Afonso Henriques que existiam cativos cristãos entre os prisioneiros feitos numa batalha contra os Mouros. Chamados à presença do rei, o deão, já muito velho, contou-lhe a sua história e confidenciou-lhe que tinham enterrado o corpo de S. Vicente num local secreto. Pedia ao rei que resgatasse o corpo do mártir para um local seguro. D. Afonso Henriques aproveitou um período de tréguas na sua luta contra os Mouros e zarpou num barco com o deão a caminho de S. Vicente. Mas o deão morreu durante a viagem e sem saber o local exacto onde estava enterrado o santo, D. Afonso Henriques aproximou-se do cabo e das ruínas do antigo templo. Foi então que avistou um bando de corvos que sobrevoavam um certo lugar onde os seus homens escavaram e encontraram o sepulcro de S. Vicente, escondido na rocha. Trouxeram o corpo de S. Vicente de barco para Lisboa e durante toda a viagem foram acompanhados por dois corvos, cuja imagem ainda hoje figura nas armas de Lisboa em testemunho desta história extraordinária.
Lenda das Três Gémeas
No tempo em que Silves pertencia aos Mouros, vinha o rei Mohamed a passear a cavalo quando encontrou um destacamento do seu exército que trazia reféns cristãos. Entre estes estava uma lindíssima jovem, sumptuosamente vestida, acompanhada da sua aia, filha de um nobre morto durante o saque ao seu castelo. Mohamed ordenou que a nobre dama fosse levada para o seu castelo, onde a rodeou de todas as atenções, e lhe pediu que abraçasse a fé de Maomé para se tornar sua mulher. A jovem chorou de desespero porque Mohamed não lhe era indiferente, mas a sua aia encontrou a solução: ambas renegariam a fé cristã apenas exteriormente para agradar ao rei mouro e possibilitar o casamento. Passado algum tempo, nasceram três gémeas a quem os astrólogos auspiciaram beleza, bondade e ternura, para além de inteligência, mas avisaram o rei que este deveria vigiá-las quando estas chegassem à idade de casar. O rei não as deveria confiar a ninguém. Passaram alguns anos e a sultana morreu, ficando a aia, que tinha tomado o nome árabe de Cadiga, a tomar conta das jovens. Quando estas eram adolescentes o rei levou-as para um castelo longe de tudo, onde havia apenas o mar por horizonte. As princesas tornaram-se mulheres, mas embora gémeas tinham personalidades muito diferentes. A mais velha era intrépida, curiosa, porte distinto e de olhar insinuante e profundo. A do meio era a mais bela, de uma singular beleza e apreciava tudo o que era belo, as jóias, as flores e os perfumes caros. A mais nova era a mais sensível. Tímida e doce, passava horas a olhar o mar sob o luar prateado ou o pôr-do-sol ardente.
Um dia, contra todas as indicações do rei aportou perto do castelo uma galera com reféns cristãos, entre os quais se salientavam três jovens belos, altivos e bem vestidos. Curiosas, as princesas perguntaram a Cadiga quem eram aqueles homens de aspecto tão diferente dos mouros. Cadiga respondeu-lhes que eram cristãos portugueses e contou às princesas tudo sobre o seu passado. Como as princesas começassem a ficar demasiado interessadas com os jovens cristãos, Cadiga pediu ao rei que levasse as filhas para junto de si, sem lhe explicar a razão. Cavalgavam as princesas com o rei e o seu séquito a caminho de Silves quando se cruzaram com os três cativos cristãos que não respeitaram a ordem de baixarem o olhar. As princesas quando os avistaram levantaram os véus e o rei, furioso, mandou castigar os cristãos insolentes. As princesas ficaram muito tristes mas conseguiram convencer Cadiga a arranjar maneira de se encontrarem com os jovens cristãos. A paixão violenta desencadeada por aquele encontro foi alegria de pouca dura. Os três cristãos foram resgatados pelo rei português e iriam embora em breve. As princesas dispuseram-se a segui-los e a converterem-se à fé cristã antes de casarem com os nobres cristãos. Cadiga rejubilava por conseguir resgatar para a fé que secretamente professava as filhas da sua ama. Foi então que a princesa mais nova se recusou a partir e a abandonar o pai. Ficou para trás e, conta a lenda, morreu de tristeza pouco tempo depois. A sua alma ainda hoje se lamenta e chora na torre do castelo nas noites sem luar.
Um dia, contra todas as indicações do rei aportou perto do castelo uma galera com reféns cristãos, entre os quais se salientavam três jovens belos, altivos e bem vestidos. Curiosas, as princesas perguntaram a Cadiga quem eram aqueles homens de aspecto tão diferente dos mouros. Cadiga respondeu-lhes que eram cristãos portugueses e contou às princesas tudo sobre o seu passado. Como as princesas começassem a ficar demasiado interessadas com os jovens cristãos, Cadiga pediu ao rei que levasse as filhas para junto de si, sem lhe explicar a razão. Cavalgavam as princesas com o rei e o seu séquito a caminho de Silves quando se cruzaram com os três cativos cristãos que não respeitaram a ordem de baixarem o olhar. As princesas quando os avistaram levantaram os véus e o rei, furioso, mandou castigar os cristãos insolentes. As princesas ficaram muito tristes mas conseguiram convencer Cadiga a arranjar maneira de se encontrarem com os jovens cristãos. A paixão violenta desencadeada por aquele encontro foi alegria de pouca dura. Os três cristãos foram resgatados pelo rei português e iriam embora em breve. As princesas dispuseram-se a segui-los e a converterem-se à fé cristã antes de casarem com os nobres cristãos. Cadiga rejubilava por conseguir resgatar para a fé que secretamente professava as filhas da sua ama. Foi então que a princesa mais nova se recusou a partir e a abandonar o pai. Ficou para trás e, conta a lenda, morreu de tristeza pouco tempo depois. A sua alma ainda hoje se lamenta e chora na torre do castelo nas noites sem luar.
Lenda de Dona Branca
Reinava em Silves o inteligente e corajoso rei mouro Ben-Afan que numa noite de tempestade, no intervalo das suas lutas contra os cristãos, teve um sonho extraordinário. Um sonho que começou por ser um pesadelo, com tempestades e vampiros, mas que se tornou numa visão de anjos, música e perfumes e terminou pelo rosto de uma mulher, divinamente bela, com uma cruz ao peito. No dia seguinte, Ben-Afan procurou a fada Alina, sua conselheira, que lhe revelou que tinha sido ela própria a enviar-lhe o sonho e que a sua vida iria mudar. Deu-lhe então dois ramos, um de flor de murta e outro de louro, significando respectivamente o amor e a glória. Consoante os ramos murchassem ou florissem assim o rei deveria seguir as respectivas indicações. Enviou-o ao Mosteiro de Lorvão e disse-lhe que lá o esperava aquela que o amor tinha escolhido para sua companheira: Branca, princesa de Portugal. Para entrar no mosteiro, Ben-Afan disfarçou-se de eremita e o primeiro olhar que trocou com a princesa uniu-os para sempre. O rei mouro voltou ao seu castelo e preparou os seus guerreiros para o rapto da princesa. Branca de Portugal e Ben-Afan viveram a sua paixão sem limites, esquecidos do mundo e do tempo. O ramo de murta mantinha-se viçoso, até que um dia D. Afonso III, pai de Branca, cercou a cidade de Silves e Ben-Afan morreu com glória na batalha que se seguiu. Nas suas mãos foram encontrados um ramo de murta murcho e um ramo de louro viçoso.
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